Presidente de Portugal reconheceu ações criminosas do país em séculos passados. Tendência de europeus, por ora, é apenas assumir responsabilização por meio de medidas simbólicas. 

O presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, voltou a defender no sábado (27) que o país deve assumir a responsabilidade pelos crimes cometidos durante a era colonial, quando traficou quase seis milhões de africanos como escravizados. No mesmo dia, porém, o governo do primeiro-ministro português, Luís Montenegro, afirmou em nota que não tem intenção de fazer ações específicas de reparação a ex-colónias. 

Além de Portugal, o reconhecimento por chefes de Estado do papel das nações europeias durante o período colonial também teve exemplos recentes na Alemanha, Bélgica e Holanda – mas resultaram principalmente em medidas simbólicas. Enquanto isso, países que foram vítimas da colonização pressionam por indenizações e outras formas de reparação histórica.

Neste texto, o Terra Nova contextualiza o movimento pelo reconhecimento de crimes históricos e explica quais são as formas de reparar nações pelo que aconteceu décadas ou séculos atrás.

Bandeira internacional

Entre os séculos XIV e XX, mais de 12 milhões de africanos foram escravizados por nações europeias num contexto de impérios coloniais. Além das vítimas da época,  o processo deixou uma herança de atraso económico e social, reforçada pelo racismo, nos países que sofreram colonização.

Partindo dessa premissa, o Burundi, um pequeno país africano, solicitou em meados de 2020 indenizações de 36 bilhões de euros à Alemanha e à Bélgica. Foi esse o valor a que chegaram historiadores e economistas após um trabalho de pesquisa para estipular os danos econômicos sofridos pelo país durante o período em que foi uma colónia, que se estendeu até 1962. Mas esse pedido nunca foi aceito.

Outros países africanos, como a República Democrática do Congo — onde milhões de pessoas foram mortas sob o domínio da monarquia belga — se juntaram às reivindicações. A Caricom (Comunidade do Caribe), que reúne o conjunto de ilhas do continente americano, criou uma Comissão de Reparações para pedir medidas de reconhecimento de nações que colonizaram a região, como França e Reino Unido. “A questão do dinheiro é secundária, mas o cumprimento moral do dever exige que, em uma economia de mercado, eles contribuam para o desenvolvimento [dos países que foram colônias]”, disse em 2020 a então presidente da entidade, Hilary Beckles.

Em 2020, a discussão a respeito do racismo estava em efervescência global movida pela morte de George Floyd, nos EUA. A mobilização popular pela tragédia foi além do território americano e levou ao debate internacional as razões históricas da persistente violência contra os negros.

Reparações simbólicas

A reparação foi historicamente direcionada aos escravistas. Quando a França perdeu São Domingos na revolução haitiana, ela cobrou uma indemnização do Estado independente do Haiti. O Reino Unido, ao abolir a escravidão, aprovou uma ampla indenização aos escravistas. E, pela América, a produção econômica seguiu impulsionada por quem havia crescido com base no trabalho escravo. 

De forma geral, indemnizações económicas não foram concedidas pelos países europeus a países colonizados ou impactados pela escravidão. Isso porque, além da própria formação social do continente, que tardou a reconhecer essa herança, a lógica do direito internacional não prevê restituição financeira nesses casos. Primeiro, porque as vítimas desse processo morreram e, se houvesse restituição aos herdeiros delas, praticamente toda a população das antigas colônias precisaria ser indemnizada. Segundo, porque deve haver consenso do próprio Estado responsabilizado quanto à punição.

A mobilização institucional, reenergizada a partir de 2020, provocou reconhecimentos políticos e medidas simbólicas. Em junho de 2022, o rei Filipe da Bélgica visitou a República Democrática do Congo e devolveu uma máscara do povo Suku, até então exposta na cidade belga de Tervuren. O país europeu ainda devolveu à família do líder congolês Patrice Lumba, morto em 1961, seus restos mortais conhecidos. O primeiro-ministro belga, Alexander De Croo, reconheceu que o país teve “responsabilidade moral” pela morte de Lubumba. 

O primeiro-ministro da Holanda, Mark Rutte, pediu desculpas pelo envolvimento do país no tráfico de escravizados e anunciou a criação de um fundo de 200 bilhões de euros para financiar iniciativas de educação e combate ao legado escravista em antigas colônias. Um grupo de pesquisa foi criado para conhecer a fundo o passado colonial da Holanda. Segundo o jornal britânico The Guardian, essa iniciativa teve impacto ao confrontar a imagem histórica da nação para os próprios holandeses.

Fank-Walter Steinmeier, presidente da Alemanha, pediu perdão pelo  genocídio cometido pelo então Império Alemão e reconhecido pelo governo do país na Tanzânia entre 1904 e 1908 — quando mais de 70 mil pessoas foram mortas. No Canadá, o governo anunciou, em 2023, um pacote de indemnização de 17,35 bilhões de dólares americano a descendentes aos povos indígenas locais pelo passado de colonização. Em paralelo, há também exemplos de empresas que admitem participação na escravidão e pedem desculpas públicas. 

A vez de Portugal

O mais recente episódio de reconhecimento se deu nas declarações de Marcelo Rebelo de Sousa, o primeiro presidente português a admitir a participação criminosa da nação na escravidão. 

“Temos que pagar os custos. Há ações que não foram punidas e os responsáveis não foram presos? Há bens que foram saqueados e não foram devolvidos? Vamos ver como podemos reparar isso” disse Marcelo Rebelo de Sousa, presidente de Portugal, na terça-feira (23)

Após as declarações do político, a ministra da Igualdade Racial do Brasil — colónia portuguesa até 1822 —, Anielle Franco, disse esperar “ações concretas” do governo de Portugal.

Mas isso dependeria de que o governo brasileiro acionasse Portugal numa corte internacional — o que é improvável, dadas as boas relações diplomáticas entre os dois países ou que o próprio Estado europeu encampasse medidas mais efetivas. Na nota divulgada no sábado (27), o governo português negou essa intenção e destacou que “se pauta pela mesma linha dos governos anteriores” em termos de cooperação com ex-colónias. 

O modelo de governo português dificulta qualquer ação além da declaração de responsabilidade. Uma restituição, por exemplo, envolveria a participação do primeiro-ministro e do Parlamento portugueses. Demandaria um engajamento político inviável no contexto atual. 

Após o pronunciamento de Rebelo, lideranças da oposição reagiram. André Ventura, líder do partido do “Chega”, disse que a declaração era vergonhosa e que o presidente deveria respeitar o voto dos portugueses, já que “não foi eleito pelos guineenses, brasileiros ou timorenses”. Presidente do Iniciativa Liberal, partido de direita, Rui Rocha, disse que aquelas declarações não representavam a “esmagadora maioria dos portugueses”. Já partidos de esquerda defendem pautar a discussão sobre reparações no Parlamento. 

TN com informações do Nexo