O Governo engavetou, por mais de dois meses, a decisão de anular os leilões dos depósitos a prazo, todos ganhos pelo banco iiB. Falta de transparência e conflito de interesses estão na base dessa tomada decisão que aponta a necessidade de realização de leilões em “novos moldes”. Mário Rui Fernandes, presidente do INPS, diz que vai reagir “atempadamente”.

O Governo, através de um comunicado divulgado na segunda-feira, 08, deixa entender, também ele, e confirmando com isto a conclusão do Banco Central de que o processo relacionado com os leilões para a remuneração dos depósitos a prazo do INPS não foi transparente e, por isso, decidiu mandar anular o segundo leilão e repetir o primeiro.

O despacho assinado pelos ministros do Estado, da Família, Inclusão e Desenvolvimento Social e das Finanças e do Fomento Empresarial e da Economia Digital, Fernando Elísio Freire e Olavo Correia, respectivamente, fala também da necessidade de reforçar a política de gestão de “conflito de interesses”.

De recordar que os dois leilões, que acabam de ser considerados nulos, foram ganhos pelo International Investment Bank (iiB), que terá que repor todo o dinheiro arrecadado nessas operações. O presidente da Comissão Executiva do INPS, Mário Rui Fernandes, foi antigo funcionário dessa instituição financeira internacional que tentou comprar o Banco Comercial do Atlântico (BCA), no quadro da sua política de expansão internacional.

Tirado a ferros

Mas o mais estranho é que o comunicado do Governo, datado de 24 de Abril, só agora foi tornado público, ou seja, depois de estar engavetado há mais de dois meses. Coincidência, ou não, o mesmo foi publicado na segunda-feira, à tarde, depois de, no mesmo dia, no período de manhã, o deputado Julião Varela (PAICV) ter enviado uma nota ao ministro das Finanças, Olavo Correia, solicitando informações sobre o relatório de auditoria aos leilões, com vista ao instituto de perguntas ao vice-primeiro-ministro que deveria acontecer ontem, quarta-feira, à tarde.

Aquele parlamentar recorda que o processo de leilões “foi interrompido” pelo Banco de Cabo Verde (BCV), que considerou ter havido “irregularidades” no procedimento e chamou atenção para eventual “conflito de interesses”, além de ter classificado a operação de “elevado risco”, que “pode pôr em causa a estabilidade do sistema financeiro”.

“Sabe-se que o BCV realizou uma auditoria e, passado todo esse tempo, não foi publicado o relatório. Já nada se fala sobre esses leilões, ou seja, se há continuidade ou suspensão definitiva”, questionou Julião Varela, interrogando, ao mesmo tempo “onde para esse relatório de auditoria produzido pelo BCV?” O comunicado de segunda-feira, do Governo, responde obviamente a algumas dessas dúvidas e questões.

Sem consequências

No seu comunicado, embora reconhecendo que a “implementação do sistema de leilões na alocação dos fundos do INPS” seja “considerada uma boa prática, alinhada com recomendações internacionais”, o Governo admite, contudo, a necessidade de “melhorias” no processo, “nos termos e em conformidade com a lei”.

Por isso, os dois governantes que tutelam o INPS decidiram anular o segundo leilão realizado em Dezembro do ano passado, cujo vencedor foi, pela segunda vez, o iiB, solicitando, igualmente, a “adequação” dos próximos leilões, conferindo-lhes “total transparência”.

Contradições

Olavo Correia e Fernando Elísio Freire também impuseram que os depósitos a prazo do primeiro leilão sejam submetidos a um novo leilão “nos moldes propostos”. Só que, segundo uma fonte bem posicionada, “ninguém conhece os moldes propostos” e “duvida-se da existência desses moldes”, porquanto “nem o BCV foi posto a par desse assunto”.

Em relação ao primeiro leilão há, conforme o mesmo especialista, uma contradição em relação àquilo que o ministro das Finanças tinha afirmado no início do mês de Março: “O primeiro não será alterado, mas o segundo está suspenso enquanto o Governo ajusta as suas recomendações consoante o parecer do BCV”.

Olavo Correia prometeu, na altura, quando o caso saltou para a praça pública, uma decisão em 10 dias, mas a mesma chega, à saca rolhas, mais de dois meses depois, para confirmar, no essencial, as mesmas conclusões do Banco Central de que os leilões não tinham sido transparentes, dando assim razão aos bancos reclamantes, especialmente, o BCN.

Ainda a propósito deste assunto, em declarações à RCV, Olavo Correia admitiu na terça-feira, 9, a possibilidade de se criar uma entidade externa para gerir os fundos do INPS, o que pode ser visto na prática como mais uma desautorização e esvaziamento dos poderes da actual administração desse instituto. Esta deixará de ter nas suas mãos um dos principais instrumentos de gestão dos milhões de contos ao dispor dessa que é considerada uma das mais importantes instituições do Estado cabo-verdiano.

INPS promete reacção

Contactado a propósito, o presidente da Comissão Executiva do INPS, Mário Rui Fernandes, deu a entender ao A NAÇÃO não se sentir afectado nem melindrado com o comunicado do Governo, no qual este confirma as irregularidades cometidas por esse instituto, bem como os cuidados a ter com eventuais conflitos de interesses, no caso dos leilões. Independentemente disso, Fernandes adiantou que a Administração vai “reagir atempadamente”, sem dizer quando.

Bancos comerciais ainda no escuro

Os bancos comerciais não sabem ainda quais são os novos moldes em que deverão acontecer, doravante, os leilões dos fundos do INPS. Isto apesar de considerarem positivo o facto de que quer o BCV quer o Governo, agora, ter vindo dar-lhes razão nas suas denúncias de irregularidades no processo de acesso aos depósitos do Instituto Nacional de Segurança Social.

“Não há regras ainda definidas, o BCV está a ser posto de lado e os bancos comerciais da praça não foram ouvidos sobre esses tais novos moldes”, disse ao A NAÇÃO uma fonte bem posicionada. Esta admite também que não é de descartar a possibilidade de uma reacção conjunta de todos os bancos em relação aos métodos dos próximos leilões que o Governo diz ter já definido mas que ainda “não é do conhecimento de ninguém”, o que “pode significar que continuamos a nadar num mar de intransparências”.

O nosso interlocutor diz, entretanto, estranhar o facto de o próprio comunicado do Governo sobre esta celeuma reconhecer que o processo não foi transparente, admitindo, igualmente a existência de conflitos de interesse, isto no pressuposto que o presidente do Conselho de Administração do INPS, Mário Rui Fernandes, ser oriundo do iiB, banco que ganhou todos leilões e não haver “consequências”.

Contudo, no seu comunicado, o Governo realça que está empenhado em assegurar a correcta gestão dos recursos do INPS, em prol dos beneficiários do sistema de previdência social. “A análise do processo de leilões do INPS e as determinações do Governo visam garantir a transparência e a eficiência na alocação dos recursos previdência social, em benefício da sociedade cabo-verdiana e do desenvolvimento sustentável do país”, finaliza.

3,5 milhões de contos para um “determinado banco”

No seu comunicado de 01 de Março, recorde-se, o Banco de Cabo Verde, enquanto regulador do sector financeiro e bancário, disse que a recusa por parte do INPS em disponibilizar regulamento dos leilões aos bancos interessados, assim como a não partilha prévia da fórmula de cálculo da avaliação das propostas, se afiguravam como sendo um procedimento que pode ser objectivamente qualificado como “falta de transparência”.

Uma situação que, segundo o BCV, não se mostra razoavelmente compatível com licitações promovidas por qualquer entidade, sobretudo quando ela é de natureza pública.

“De facto, a falta de acesso prévio ao regulamento e à fórmula de cálculo não permite aferir com segurança a legitimidade dos resultados. Outrossim, a fórmula de cálculo para a avaliação dos riscos dos bancos participantes não se mostra correcta, visto que três das quatro variáveis não foram normalizadas em escalas comparáveis, resultando no enviesamento dos resultados”.

O BCV adiantou na altura que, caso não tivesse actuado a tempo, corria-se o risco de, num curto espaço de tempo, ocorrer a desmobilização de depósitos no montante de 3,5 mil milhões de escudos de alguns bancos para um único banco, ou seja, o iiB, “que beneficiaria dos pressupostos/critérios considerados para o apuramento dos resultados dos leilões”.

“Este facto seria suscetível de acarretar impactos negativos nos principais indicadores prudenciais de alguns bancos”, indicou, adiantando constatar que foram introduzidas novas regras de rateio a meio percurso, incorporadas na carta-convite do segundo leilão, as quais não constam do regulamento aprovado, facto que corrobora as conclusões de falta objectiva de transparência do processo.

“Se o objectivo dos leilões era a rentabilidade dos fundos do INPS, sem descurar da avaliação de risco, o que é compreensível e legítimo, no entanto deve-se dizer que o peso atribuído à componente dos rácios prudenciais mostra-se inadequado, tendo em conta que os bancos participantes apresentam indicadores dentro dos limites regulamentares e de referência definidos pelo BCV”, realçou.

Alegações do INPS

Por seu turno, reagindo às apreciações do BCV, também em comunicado, em 7 de Março passado, a Comissão Executiva do INPS insistiu na bondade e lisura do seu procedimento, dizendo que a mesma se enquadrava “na política de melhoria da rentabilidade da carteira de investimentos” do instituto, “que por norma visa a capitalização dos recursos que lhe são legalmente confiados”.

“Este novo procedimento trouxe mais transparência, objetividade e rigor na gestão desses recursos, cuja finalidade, nos termos da lei, é garantir a sustentabilidade do sistema e o pagamento das prestações sociais sob a responsabilidade do regime contributivo de segurança social”, alegou.

O sistema anterior não cumpria as metas estabelecidas visto que, rentabilizava os valores colocados nos bancos, a taxas muito abaixo do recomendado no estudo atuarial (3.5%), e não decorria das melhores práticas internacionais”. E mais, disse o INPS, “Todo o procedimento foi objetivo, transparente, ponderado e do conhecimento atempado de todos os bancos, tanto que no primeiro leilão todos os convidados manifestaram interesse e participaram no procedimento”, garantiu.

Leia na íntegra na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 880, de 11 de Julho de 2024 

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