Economia de Cabo Verde e poder de compra dos cabo-verdianos em 2024
SOURCE: [A Nação]
Por: João Serra*
Com conflitos militares persistentes, uma série de grandes eleições pela frente e crescentes ataques de clima extremo, entre outros fatores, é provável que o ano de 2024 traga mais do mesmo e, inclusive, seja um pouco pior que o ano de 2023, no concernente ao crescimento económico global.
Cabo Verde, estando mais afastado das zonas de conflito, com menos relações comerciais com os países em guerra, estaria menos vulnerável, não fossem dois problemas estruturais, além de ser uma pequena economia aberta e muito impactada pela conjuntura económica internacional.
Por um lado, o país é muito dependente da importação. Quase tudo o que se consome e se investe a nível nacional é importado, ou seja, Cabo Verde é um país “price-taker” (tomador de preço). Como importa grande parte dos combustíveis e da comida, sofre muito mais do que os outros países com a subida do preço da energia e dos bens alimentares.
Cabo Verde importa, sobretudo, dos países da Zona Euro (ZE), sendo esta o seu principal parceiro comercial e, também, de desenvolvimento. Assim, afeta-o, com algum significado, a situação económica e social nos países da moeda única europeia.
Por outro lado, o país tem uma economia muito pouco diversificada e demasiadamente dependente do turismo (o principal “driver” do crescimento económico). Consequentemente, o desempenho económico nacional é, de certa forma, impactado pela situação económica e social dos países emissores de turistas, nomeadamente o Reino Unido – o principal mercado emissor.
Para além disso, já não se pode esperar contributos extraordinários do turismo em 2024, porque, nas condições existentes no país, já se concluiu o processo de recuperação da crise pandémica, mais cedo do que se esperava. Logo, a contribuição do setor do turismo para o produto (PIB) não terá a mesma pujança que nos últimos dois anos.
Seja como for, importa olhar para o futuro e perceber qual o cenário económico de 2024 previsto pelos principais organismos internacionais para a ZE e o Reino Unido.
De acordo com as mais recentes previsões da Comissão Europeia (CE), a Zona Euro protagonizou um crescimento anémico em 2023 – de 0,6%. Contudo, na sequência da recuperação do consumo interno, devido ao aumento dos salários e ao abrandamento da inflação, a ZE deverá registar uma melhoria do desempenho económico em 2024, estimando-se um avanço de 1,2% no PIB desta geografia. Já a inflação média anual deverá recuar de 5,4% em 2023 para 2,7% em 2024.
No entanto, a CE alerta para os riscos que permanecem latentes no cenário económico para 2024, nomeadamente os efeitos das políticas monetárias restritivas, a evolução das tensões geopolíticas, o desempenho dos principais parceiros comerciais da Europa (caso da China) e os eventos climáticos extremos (cada vez mais frequentes), tais como inundações, ondas de calor e incêndios de grandes proporções.
Já para o Reino Unido, é o seu próprio Governo a admitir que há “riscos muito altos” de o país entrar em recessão em 2024, visto que o crescimento do PIB está baixo (0,7% em 2023) e a inflação continua persistente (4%, em 2023). Apesar disso, o Governo britânico vê evolução no quadro económico nacional, e destaca que a previsão, há um ano, era de “recessão profunda”, e hoje as chances de uma contração leve estão perto de 50%. Para 2024, espera-se uma taxa de inflação em torno de 3%.
As previsões do Governo de Cabo Verde apontam, em 2024, para uma taxa de crescimento do PIB de 4,7% e para uma taxa de inflação de 2,8%. Este cenário é elaborado numa conjuntura de elevada incerteza, caraterizada por uma deterioração das perspetivas de crescimento da atividade económica e, possivelmente, por uma inversão da tendência de desaceleração dos preços nos principais parceiros económicos do país. Face aos riscos potenciais existentes, não se pode dizer, com probabilidade razoável, se se tratam de metas realistas, ou não.
Os riscos do cenário macroeconómico do Governo pendem de forma descendente para o crescimento da atividade económica e de forma ascendente quanto à inflação para 2024. Pois, é preciso ter em consideração o facto de Cabo Verde, como pequena economia aberta, estar exposta às consequências económicas e sociais dos efeitos adversos da inflação alta e do crescimento baixo das economias dos seus principais parceiros comerciais.
Particularmente, no que diz respeito aos preços, deve-se ter em conta que a economia cabo-verdiana é muito permeável à alta dos preços da energia e dos produtos alimentares no mercado internacional (inflação externa). Assim, num contexto de crise no Médio Oriente e dos seus potenciais efeitos na subida desses preços, o abrandamento da taxa de inflação do Governo, de 3,7% em 2023 para 2,8 % em 2024, está sujeito a um forte risco de natureza ascendente.
Em 2024, continuará o empobrecimento generalizado e relativamente acentuado dos cabo-verdianos, em resultado da perda de poder de compra dos salários, reformas, pensões e subsídios sociais – doravante, designados por rendimentos das famílias. Se considerarmos a acumulação das inflações registadas em 2022 (8,0%) e 2023 (3,7%) com a inflação prevista para o ano de 2024 (2,8%), haverá, apenas entre 2022 e 2024, uma perda do poder de compra de mais de 15%.
Essa deterioração do poder aquisitivo da grande maioria das famílias cabo-verdianas resulta do facto de os seus rendimentos, de um modo geral, não terem sido atualizados em 2022 e só o foram parcial e marginalmente em 2023. Em 2024, está prevista, no âmbito do Orçamento do Estado (OE), de forma explícita, apenas uma atualização irrisória das pensões de reforma mais baixas. Refira-se que o Estado, no sentido lato, é o maior provedor de emprego formal e de prestações sociais em Cabo Verde.
Tal situação de contínua perda do poder de compra vem afetando e continuará a afetar, sobretudo, as camadas mais desfavorecidas da nossa população. Note-se que as classes de bens e serviços com mais intensidade no crescimento dos preços desde 2022 são os produtos alimentares e as bebidas não alcoólicas, que, só entre 2022 e 2023, registaram uma inflação acumulada de 21%. Isso constitui um risco para a segurança alimentar – sobretudo para as famílias com rendimentos muito baixos –, a habitação, a água, a eletricidade, o gás e os transportes.
De facto, desde 2022, estamos perante uma escalada de aumento dos preços de bens, em particular de bens essenciais, como há muito não se verificava e sem que os rendimentos das famílias tenham acompanhado esses aumentos.
Nesse contexto, era essencial proceder à recuperação e valorização dos rendimentos das famílias, particularmente dos pobres e remediados, o que não aconteceu de todo com os Orçamentos dos anos de 2022 e 2023 e, também, não vai acontecer com o OE em vigor. E havia folga orçamental suficiente para o efeito, obtida com o aumento extraordinário das receitas fiscais proporcionado pela inflação – uma espécie de “windfall tax” (“impostos vindos com o vento”) a favor dos cofres do Estado, tal qual expliquei num dos meus artigos anteriores.
São muitos os desafios que Cabo Verde tem pela frente. Na verdade, a crise global, marcada por uma grande incerteza e complexidade, convoca-nos a provocar profundas alterações na nossa economia e na nossa sociedade. Nesse sentido, seria muito importante que o Estado, os partidos políticos, as empresas, a academia e os cidadãos em geral estabelecessem aquilo que eu chamava “um contrato de competência e confiança”. Tal contrato permitiria encontrar as respostas adequadas para um conjunto de problemas que vêm do passado e se vão agudizar com o passar do tempo.
Enfim, precisamos de saber responder de forma colaborativa e inteligente aos vários desafios deste novo tempo, tempo esse potenciador de impactos incertos e complexos ao nível da economia, da qualidade de vida e do equilibro da sociedade.
Praia, 28 de janeiro de 2024
*Doutor em Economia