Por: Luís Kandjimbo**

A propósito do potencial positivo dos estudos humanísticos, subscrevi, há alguns anos, a afirmação de um escritor nigeriano, extraída do seu artigo com o título: «Les ‘Humanités’ contribuent-elles a l’Humanisation?» (As Humanidades Contribuem para a Humanização ?), publicado na revista Politique Africaine, em 1984. 

Sobre as Humanidades Femi Osofian escrevia o seguinte: «Elas inculcam comportamentos e hábitos de pensamento; difundem o gosto por valores como a honestidade e a qualidade; provocam a apetência por atitudes libertárias perante a sociedade e a história […] criam e ampliam virtudes essenciais através das quais uma sociedade pode determinar, em qualquer momento da sua história, as orientações que permitem a sua sobrevivência».

Ora, as deploráveis situações vividas em alguns países do nosso continente, por ausência de políticas públicas de apoio às liberdades culturais, de criação literária ou ainda suas derivações orientadas para o livro e a leitura, continuam a suscitar debates. Por isso, parece ser legítimo ir mais longe, discutir a consagração do direito à literatura como uma nova categoria de direitos humanos colectivos.

Debates actuais

Os actuais debates sobre o direito à literatura, registam-se naquelas áreas dos estudos literários e da filosofia que se ocupam da conceptualização dos direitos humanos e dos direitos fundamentais. A este respeito, interessam-me especialmente as perspectivas filosófica e civilizacional. Três das referidas áreas são a Crítica Literária, a Filosofia da Literatura e a Filosofia dos Direitos Fundamentais. Poder-se-á admitir a possibilidade de existência de um direito à literatura, a propósito do direito ao desenvolvimento consagrado na Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, a Carta de Banjul? A resposta a esta pergunta e à formulada por Osofian sugerem diálogos cruzados com diferentes focagens. Para o efeito convoco aqui o professor, ensaísta e crítico literário brasileiro António Cândido (1918-2017) com o seu livro «Direito à Literatura e Outros Ensaios», a filósofa norte-americana Martha Nussbaum (n.1947), o economista e filósofo indiano Amartya Sen (n.1933). A zona de intersecção destes três autores é representada pela ideia de «desenvolvimento como liberdade», na feliz enunciação do título de um livro de Amartya Sen, publicado em 1999. Donde, pode dizer-se, a salvaguarda das liberdades culturais e de criação literária, enquanto «oportunidades sociais», contribuem para a dignidade da pessoa humana e sua realização, no contexto das sociedades democráticas.

Liberdade cultural 

A problemática da liberdade cultural foi o tema do Relatório sobre o Desenvolvimento Humano, publicado em 2004, pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Nesse documento, é expressamente referido o facto de a liberdade cultural ser uma «dimensão desconhecida do desenvolvimento humano». Além disso, reconhecia-se igualmente que das cinco categorias de direitos humanos – civis, culturais, económicos, sociais e políticos – os direitos culturais tinham sido os mais negligenciados, durante o século XX. 

O referido relatório vem introduzir rupturas no discurso oficial das agências da Organização das Nações Unidas, com a formulação de um novo conceito de desenvolvimento humano. Defende-se aí a ideia segundo a qual «a perspectiva do desenvolvimento humano pode ser ampliada para acolher a importância da liberdade cultural». Assim, estabelecem-se conexões com a liberdade humana, desenvolvimento humano, as esferas social, política e económica, entre rendimentos relativos e capacidades humanas absolutas. Por outro lado, procurava-se concretizar à medição da liberdade cultural.

Imaginação narrativa 

A filósofa norte-americana Martha Nussbaum produziu uma interessante reflexão sobre o tópico da presente conversa, quando, em 2010, publicou o livro, «Sem Fins Lucrativos. Porque Precisa a Democracia das Humanidades?». Defende várias ideias. Destacamos quatro: 1) As humanidades e as artes proporcionam competências essenciais para manter a democracia; 2) O pensamento crítico cria culturas empresariais de responsabilização nas quais vozes críticas não são silenciadas; 3) As humanidades oferecem intuições que possuem um valor intrínseco para uma melhor compreensão das nossas vidas; 4) É necessário desconfiar do privilégio que se atribui ao ensino da STEM (Ciência, Teconologia, Engenharia e Matemática) em detrimento das humanidades e artes que, em todo o mundo, são eliminadas do ensino primário, secundário e universidades. 

Ao sintetizar o seu pensamento, Martha Nussbaum considera que a «imaginação narrativa» é uma das mais importantes competências do cidadão do nosso tempo. Trata-se da «capacidade de pensar como será estar na situação de outras pessoas diferentes de mim, de ser leitor inteligente da história dessa pessoa e de compreender as emoções e os desejos e anseios de alguém que está noutra situação». A literatura é, efectivamente, uma das suas mais importantes expressões.

António Cândido – professor, ensaísta e crítico literário brasileiro

Direito à Literatura 

Nos países que têm o português como língua oficial, o professor, ensaísta e critico literário brasileiro António Cândido, que vemos na imagem, foi um dos poucos que se  propôs abordar as conexões entre os direitos humanos e a literatura de cuja síntese resultou a enunciação conceptual do «direito à literatura». A força legitimadora do critério que permite definir o direito à literatura como direito humano dependia da sua inserção na lista das necessidades profundas do ser humano. Em seu entender, isso significava colocar a questão para saber se a literatura é uma necessidade deste tipo. 

António Cândido chegava a esta conclusão. Não se podia negar a fruição da literatura porque a consequência é sempre traumática para a nossa humanidade, em virtude de constituir uma mutilação. Entendia que a literatura constitui um poderoso instrumento para denunciar restrições de direitos, ou a sua negação, como a miséria, a servidão e a mutilação espiritual. 

Por essa razão, António Cândido não hesita. Inscreve o direito à literatura no catálogo dos direitos humanos partindo do seguinte pressuposto. Se se reconhece dignidade àquilo a que designa por «bens incompressíveis», tais como a alimentação, a habitação, a educação, a saúde, a liberdade individual, a tutela jurisdicional, a resistência à opressão, o direito à crença, à opinião, ao lazer, por maioria de razão fazia sentido incluir a arte e a literatura na lista desses bens.

A sua definição de literatura compreende todas as criações de cunho «poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura». Inclui a literatura oral ou folclore, abrangendo outras formas mais complexas. Neste sentido, afirma «não há povo e não há homem que possa viver sem ela». A argumentação do ensaísta e crítico literário brasileiro é consistente. Sustenta a irrecusável utilidade dos universos da ficção e da poesia. Isto é, a literatura concebida como uma necessidade universal.

 Potencial formativo 

António Cândido e Martha Nussbaum revelam uma convergência de pontos de vista, quando se trata de identificar oponentes ou inimigos dos estudos humanísticos. Ambos fazem a apologia de funções não-convenções desempenhadas pela literatura em matéria de formação da personalidade.  De tal modo que, no dizer de António Cândido, o livro pode ser factor de perturbação nas mãos do leitor. Assim se explica que possa suscitar «condenações violentas», ao atacar visões oficiais e convencionais. gostaria de proscrever. Apesar disso, o potencial formativo da literatura em matéria de formação da personalidade e humanização está fora de qualquer suspeita. 

Tal como Femi Osofian e Martha Nussbaum, António Cândido define a «humanização» que a literatura proporciona como processo que conduz o homem aos exercícios da reflexão, aquisição do saber, compaixão e empatia com o próximo, tornando os humanos mais humanos. Para Martha Nussbaum a existência de inimigos do ensino da literatura e dos estudos humanísticos é a expressão daquilo a que designa por «crise silenciosa», isto é, a consequência dos decisores políticos no sentido de se proceder a cortes de despesas supérfluas, reduzindo o financiamento do ensino superior, entre as quais se incluem as que poderiam estar ao serviço do ensino da literatura. Interpretando as confissões de Martha Nussbaum percebe-se que o seu livro é um libelo contra a ascensão das doutrinas neoliberais nos Estados Unidos da América. O que a tornava apreensiva, relativamente ao futuro do ensino das humanidades. 

Conclusão

O conceito de «desenvolvimento como liberdade», que Amartya Sen analisa no seu livro, revela aqui uma pertinência. Se o ensino da literatura e das humanidades em geral realiza-se em nome da liberdade, é ao seu serviço que está o desenvolvimento. O que significa dizer que o desenvolvimento não é compatível com a ausência de liberdade concretas. A este propósito, Amartya Sen considera que semelhante circunstância está directamente relacionada com a pobreza económica. Estas ideias foram desenvolvidas e trazidas a público em 1999. Mas são retomadas no Relatório sobre o Desenvolvimento Humano, «Liberdade Cultural num Mundo Diversificado», de 2004, de que ele foi consultor. Aí procede-se à caracterização da liberdade cultural considerando-se que os avanços registados devem ser associados ao desenvolvimento humano. Por isso, não pode a avaliação dos êxitos e fracassos das sociedades actuais ignorar as virtualidades da liberdade cultural.

 

*Texto publicado no Jornal de Angola, no dia 11 de Dezembro, aqui republicado com a autorização do autor.

**Ph.D. em Estudos de Literatura, M.Phil. em Filosofia

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