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No âmbito dos encontros que o Presidente José Maria Neves tem mantido com as populações de origem cabo-verdiana no país, um dos descendentes desses trabalhadores 'contratados', Venâncjio dos Santos, conhecido como 'Joãozinho', produtor de café e fundador de uma associação que apoia os residentes de origem cabo-verdiana, foi condecorado com a ordem de 2a classe da Medalha do Vulcão pelo trabalho que tem desenvolvido. Em declarações à RFI, Venâncio dos Santos recordou o seu percurso.

"Trabalhei na roça e na plantação. Trabalhei na oficina e na agricultura. Na época, não havia essa liberdade. Como sabe, a gente estava sob o jugo colonial. A gente não tinha tanta expressão como dizem agora. Aquilo tinha um horário que tinha que respeitar. Era um bocadinho mais forçado. Às vezes davam tarefa que você não cumpria toda e não ganhava o dia. Não havia aquela liberdade. Depois, com o conhecimento, fui comerciante, fui condutor de praça. Depois dediquei-me à agricultura, café e transformação. Depois de 25 de Abril pensámos em criar uma associação. Dado o ambiente que estava a passar, pensámos, unimo-nos com algumas pessoas, criamos uma associação, a Kê Morabeza", conta o descendente de 'contratados' cabo-verdianos.

Questionado sobre a condecoração que recebeu de Cabo Verde, Venâncio dos Santos diz que lhe dá alento para continuar empenhado junto da sua comunidade. "Se houver possibilidades para fazer mais, eu vou fazer. Normalmente há sempre pessoas que precisam de uma mão, precisam de medicamentos. Precisam de alimentação, mais do que dinheiro, eles não têm dinheiro. Um bocadinho que eu tenho, às vezes ajuda para medicamentos e outras coisas essenciais", diz o líder associativo.

'Contratados' cabo-verdianos chegam a São Tomé e Príncipe no começo do século XX

Calcula-se que cerca de 8% da população de São Tomé e Príncipe tenha origem cabo-verdiana. Chegados em massa no princípio do século passado, foram para as roças e trabalharam sob o chamado regime de 'contratação'. A historiadora são-tomense Nazaré Ceita que tem pesquisado sobre este período e que ultimamente tem trabalhado juntamente com outros estudiosos dos PALOP na elaboração de uma obra sobre as lutas de libertação nacional, evocou com a RFI a história dos 'contratados', em particular os trabalhadores que deixaram para trás as ilhas de Cabo Verde.

Ao recordar que após a abolição da escravatura, verificou-se "uma terrível falta de mão-de-obra" e os antigos escravos, doravante livres, "correm para a cidade de São Tomé," muitos deles tornando-se sapateiros ou agricultores independentes, a estudiosa explica que começam a contratar pessoas vindas de fora para dar continuidade ao trabalho nas roças de cacau de que o país, naquela época, era um dos grandes produtores.

Chegam de Angola, Moçambique e até da China, segundo a historiadora que, relativamente a Cabo Verde, de onde vieram boa parte dos trabalhadores, refere que "havia agentes de contratação naquele país. A partir de lá, já eram direccionados para diversos patrões em São Tomé e Príncipe. Mas por causa desta avalanche de gente, nem sempre os cabo-verdianos que vinham já tinham patrão. À chegada, todos eram encaminhados para a antiga curadoria geral dos serviçais e colonos. E aí havia um barracão onde todos se concentravam no sentido de, a partir deste barracão, como um lugar de trânsito onde ficavam", até serem encaminhados para as roças onde iriam trabalhar.

"Os próprios contratos estabeleciam quais eram as regras. Este contrato estava dividido em duas partes; o dinheiro que era recebido aqui e, depois, outro dinheiro que deveria ser revisto quando chegassem aos lugares de origem após a repatriação. Havia um cofre, o chamado 'cofre de repatriação', e esses cálculos eram feitos neste sentido. Só que a verdade é que muitos não regressavam. Estes dinheiros que foram para o 'cofre de repatriação' nem sempre era recuperado," refere a universitária detalhando que os contratos tinham normalmente prazos de três a cinco anos.

"Só que houve uma determinada altura em que houve novas regras. Aliás, havia legislações atrás das legislações, umas que depois tornavam inviáveis as outras, porque vários trabalhadores foram confrontados com a questão da recontratação. Então muitos foram submetidos não ao regresso, mas a continuarem em São Tomé, sobretudo nos anos 50," recorda Nazaré Ceita ao especificar que foram criados assentamentos "para suprir sempre a mão-de-obra que faltasse".

As roças eram espaços herméticos com ferrolho

"As roças eram espaços herméticos com ferrolho. Os únicos dias em que os contratados podiam sair, às vezes eram ao domingo e com hora de sair e de regressar. Havia o terreiro com as casas dos patrões de um lado e do outro lado, as sanzalas, com filas de casas sem janelas, normalmente com um espaço apenas, sem casas de banho, casas compridas em que eram aí onde ficavam completamente controlados por um sino para regular o quotidiano. O sino que tocava para o recolher, o sino que tocava para a hora do trabalho, portanto, era um espaço hermético, violento para aqueles que desobedecessem. E daí que houvesse também muitas desobediências", relata a estudiosa que refere ter tido em mãos "imensas cartas trocadas entre os patrões, entre a administração do Conselho, com a curadoria geral dos serviçais e colonos para castigar aqueles que prevaricavam."

Na clausura das roças onde mal chegava o murmúrio do mundo, os trabalhadores 'contratados' foram mantidos de certa forma distantes do século e dos ventos de revolta que sopraram, por exemplo, em 1953, aquando do que foi recordado como 'os massacres de Batepá'.

"Batepá erroneamente foi considerado o local do massacre, porque as interpretações da altura assim o fizeram, tendo em conta que a zona de Mé-Zóchi, a zona da Trindade, as suas populações irreverentes, foram populações autóctones que nunca concordaram com os termos das repressões coloniais que estavam a verificar-se em São Tomé e Príncipe, desde os anos 30", conta Nazaré Ceita.

"Eu não posso dizer que essas populações roceiras vivenciaram da mesma forma os acontecimentos de 1953, como a própria população nativa são-tomense. Alguns patrões, alguns portugueses, foram solidários com a população autóctone. Não foram todos. Houve portugueses solidários que, por exemplo, aproveitaram para esconder nos seus espaços alguns momentos considerados irreverentes. Grande parte dos roceiros vai colaborar com Gorgulho (governador português entre 1945 e 1953) e os seus seguidores para reprimir os nativos são-tomenses que foram acusados de manobras comunistas. As roças eram um mundo à parte e a verdade é que uma repressão deste tipo, os muitos roceiros estavam a favor porque de facto isto acabaria por colocar em causa o status quo existente que era o trabalho roceiro", relata.

O 25 de Abril que marcou uma viragem em Portugal que viria depois a abrir a porta à independência das suas antigas colónias (ou ao seu reconhecimento no caso da Guiné-Bissau, que tinha declarado a sua independência em 1973), também foi sentido com alguma distância nas roças. "Foi uma situação de surpresa, isto é, ninguém compreendia o que se estava a passar. Acreditava-se que através das informações que havia um vento de mudança. Mas a consciência do 25 de Abril não chegou cedo. Nas roças, as pessoas continuavam a pensar que era apenas uma mudança ligeira. Só depois, no dealbar do 1974, com abertura para o país ao Movimento de Libertação de São Tomé e Príncipe, da chegada da Associação Cívica para o MLSTP, Associação Cívica que vai depois entrar nas roças a chamar pela consciência das populações a esses ventos de mudança. A verdade é que inicialmente as pessoas não compreendiam o que se estava a passar. O que se passou é que nós não tivemos luta armada no país, não houve confrontos, havia perseguições da PIDE, é verdade, mas esses ventos de libertação por causa da questão da clandestinidade e das redes clandestinas, muita gente, sobretudo nas roças, com certeza não sentiam ainda este vento de mudança", diz a estudiosa.

Os habitantes das roças nos dias de hoje

Depois da independência em 1975, as terras são nacionalizadas. Esse momento coincide com uma queda da produção de cacau encetada alguns anos antes. "Creio que nós quando chegamos à independência, estávamos com 10.000 toneladas. Já era muito pouco em relação às imensas toneladas de 1913 em diante. E então já havia muitas dependências que estavam a ser abandonadas pelos próprios roceiros, quer pela falta de mão-de-obra, quer pelas doenças sazonais que apareciam nas plantações do cacau a que não se fazia frente em termos tecnológicos", observa a professora universitária.

Questionada sobre o estatuto dos antigos trabalhadores das roças, Nazaré Ceita reconhece que as suas condições de vida são difíceis mas considera não foram abandonados. "Uma das coisas que o partido no poder na altura fez, foi acabar com estas divisões que havia de que uns eram uma coisa, outros eram outra coisa, de que uns eram bem-vindos, outros mal vindos. Todos são-tomenses eram iguais. Aliás, a constituição política dizia isso. Podem ter falhado medidas administrativas no sentido de proceder ao registo dessas pessoas como são-tomenses, mas pela minha vivência eu não encontro motivo para que se diga que essas pessoas continuaram abandonadas", diz.

Quanto ao caminho de regresso que não se fez, a historiadora admite que houve falhas, mas considera igualmente que a situação em que se encontram essas comunidades acaba por não ser diferente daquela que é vivenciada pela generalidade da população."Foi uma falha do país colonizador e se calhar não poderia ser de outro jeito. Não houve tempo material para que as pessoas pensassem como é que ficariam esses trabalhadores após as independências. E, no entanto, o alarme foi feito por estudiosos, por imensas pessoas que achavam que os cabo-verdianos e outros antigos serviçais não estavam bem em São Tomé, que eram pessoas desprezadas, que viviam à sua sorte, o que é o apanágio, no meu ponto de vista, para toda a população são-tomense. Hoje mesmo são-tomenses que vivem nas zonas rurais, creio que enfrentam quase os mesmos problemas que enfrentam os cabo-verdianos nas roças. A situação é caótica para aqueles que não têm condições mínimas para sobreviverem. A subida vertiginosa dos preços que nós verificamos em São Tomé e Príncipe de há muitos anos a esta parte", observa.

O necessário trabalho de memória

Olhando retrospectivamente para a história comum dos países africanos e de Portugal, Nazaré Ceita considera que tem havido uma crescente tomada de consciência.

"Eu convivo com imensos académicos portugueses pela força da minha profissão e eu acho que há uma tomada de consciência. Há linhas de investigação que se estão a 'descolonizar'. Eu acho isso bastante bom. Isto é em Portugal, mas também já há imensos africanos a revolucionar, a ajudar a 'descolonizar' o pensamento colonial. Há muito mais gente a ter um olhar endógeno sobre as questões que nós vivenciamos desde o colonialismo até aqui", considera a pesquisadora.

Questionada sobre o trabalho que está a desenvolver com uma equipa de estudiosos dos PALOP sobre as lutas de libertação nacional e cujo resultado deve ser publicado para o ano que vem, no âmbito da celebração dos cinquenta anos da independência desses países, Nazaré Ceita insiste sobre a importância dessa pesquisa colectiva.

"Eu acho que é um trabalho necessário perante as novas tendências que tem havido no sentido da ridicularização de um momento político extremamente decisivo, que foi a luta de libertação nacional dos nossos países. Há uma espécie de descredibilização desta luta. Há uma espécie de rasurar esta luta, no sentido de que as pessoas que lutaram teriam acabado por não trazer coisas positivas ao país. E nós, o que queremos demonstrar é que se trata de um processo histórico próprio. Os países têm momentos históricos e, na verdade, essa história foi bem necessária no sentido de reverter a situação vigente que nos oprimia, denunciada por várias pessoas, por pessoas que sofreram na pele e que, portanto, estes movimentos de libertação foram uma forma, às vezes violenta, que os países, que as pessoas encontraram, que os dirigentes, os nossos pais da independência, encontraram para mudar de facto uma situação terrível de opressão", conclui Nazaré Ceita.

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