Nhu Puxim, na kambar di sol
SOURCE: [Expresso das Ilhas]
https://expressodasilhas.cv/opiniao/2024/05/20/nhu-puxim-na-kambar-di-sol/91514
Orfã de mãe aos seis anos incompletos e de pai aos oito, Nha Bia cresceu com familiares na Ribeira da Barca, onde conheceu o seu primo e futuro marido, também este filho de comerciante vindo do Fogo e nascido na Calheta, mais concretamente na Veneza (Benexa). Principalmente nessa época, princípios do século XX, a ilha do Fogo dominava o comércio na ilha de Santiago. E é por esta razão que, tanto Nha Bia, como Professor Velhinho Rodrigues, tiveram a sorte de nascer num povoado próspero e voltado para o sol como era Calheta de São Miguel na época. Calheta, durante a primeira república portuguesa, era um povoado não menos importante da ilha. Entretanto, foi no porto de Ribeira da Barca que nasceu no dia 8 de outubro de 1942 o humorista Nhu Puxim, primogénito de Nha Bia e Professor Velhinho Rodrigues. Nhu Puxim viveu também alguns anos da sua infância em Santa Cruz onde o pai exercia a função, tendo a família fixado residência em seguida no porto da Calheta, em São Miguel, e décadas depois em Achada Santo António, na cidade da Praia.
Dizer que Nha Bia e Professor Velhinho Rodrigues eram do tempo de Nha Bichencha é afiançar que eram muito antigos, muito mais velhos do que os meus avós. Na minha meninência, também ouvia falar de Nha Minda, Nha Quitéria, Nha Razência, Joaquim Fontes, Euclides Fontes, Nhu Tui, Nha Amélia, padre Crettaz, padre Moniz, Nhu Vicente Luciano, Nha Beta, Nha Liminha, Nhu Olímpio Luciano, Nhu Donda, Gil di Jóia, Maria Miranda, Maria di Ntónia e muitos outros distintos daquela época já remota. Cheguei a conhecer alguns que morreram já muito enrugados.
Nhu Puxim (também conhecido por Djonsa pelos amigos da escola e da bola) era quase dez anos mais novo, mas, por ser filho de professor, foi bafejado pela sorte e teve a oportunidade de estudar e, devido à presença do pai dele na Calheta, muitos rapazes do seu tempo, também tiveram a chance de estudar. Foi assim que o meu avô materno se escapou da iliteracia, tendo sido colega de turma de Nhu Puxim e de Euclides Fontes, e ganhou o gosto pela leitura, passando o mesmo gosto para a geração dos filhos e dos netos. Euclides Fontes foi professor da minha mãe, do meu pai (quando ainda menino ele mudou com a família de Assomada para Calheta) e dos colegas deles. A família Velhinho Rodrigues morava numa casinha no porto da Calheta que pertencia aos pais de Nha Bia, a mãe do humorista Nhu Puxim e do poeta Vadinho Velhinho Rodrigues. Naquela casa, no tempo dos Velhinhos, havia livros e a luz do podogó brilhava até altas horas da noite por causa da leitura que se fazia. Esse era o espírito da época. A presença de livros, de bibliotecas e de leitores no porto da Calheta era uma evidência desde tempos remotos e isso teve impacto que perdurou no tempo.
«Numa noite de Verão, à varanda da nossa casa frente ao mar e hoje frente à Praça, contemplava a minha aldeia mergulhada numa escuridão tremenda e eu, sonhadora e romântica, antevia Calheta num prisma diferente: uma Vila iluminada e com vida noturna capaz de desafiar a própria Vila do Tarrafal. De mansinho, o mar beijava a praia na areia luminosa, como que debaixo do cântico da magia das sereias» (Dionísia Velhinho, in Na Minha Terra Também Se Ama).
II. Falaram-me de um passado cheio de histórias. A noite trazia essas histórias, como se tratasse de um passo de magia. Era hora sagrada quando ficávamos calados escutando as aventuras de Nhu Puxim contadas por Nástasi Lopi. Acontecia às segundas, depois do ressonante «seti hora na tudu kantu di Kabu Verdi, notísia na língua di terra», aquele famoso jornal das sete da noite na Rádio Nacional. O programa radiofónico Na Kambar di Sol, animado pelo humorista Nhu Puxim, desabrochava gargalhadas lá em casa e os meus avós tinham gosto em dizer que ele era filho da nossa aldeia. Anos depois, quando ele andava pelo país com o seu Comboio da Cultura e ia a Calheta muita vez, ele passou a visitar a nossa casa e nós conversávamos, porque me interessava muito e ele se sentia orgulhoso em dizer coisas à novíssima geração.
Nástaci Lopi foi um dos maiores humoristas de Cabo Verde. Das suas várias historietas, quem não se lembra de «Nem Tudo Subiu», «Capacete», «Rescaldo das Eleições», «Polícia Quinzenal», «Mini-saia», «Tapa Braco», «Ranja Noiva», «Carta pa Lisboa», «Relógio Nobo» ou «Badja Noticiário». Tudo isso, assim, à «homem vivente», num estilo irónico e mordaz, na fina flor da tradição oral santiaguense, por entre as fronteiras reais e imaginárias do campo e da cidade.
Havia, com efeito, um propósito de abanar o imaginário cultural e social, a começar pelas controvérsias de ordem linguística e geocultural. De forma cómica, Nástaci Lopi abordava diversas questões sociais, como o mundo da política, o contacto com outras culturas, a vida do emigrante, a urbanidade e a ruralidade, a masculinidade imperante, a violência doméstica, a galhofa sexista, a sexualidade ou a «vivida arcoólica».
Enfim, as peripécias de um rapazinho esperto transformaram-se nas maravilhosas aventuras de Nhu Puxim, na companhia de figuras populares hilariantes, memorando nomes de gente da Calheta do seu tempo e de outras localidades da freguesia de São Miguel Arcanjo, como Compadre Margalhães, Mindo, Lina di Nha Txubinha, Gaudêncio, Nha Francesa, Titio Dezidere, Nha Saramãe, Xibiote, Joaquinzinho, Ntoninhu di Sema, Doli ou Bandan di Nha Mita. E também, tal como as figuras populares enriqueciam as suas curtas narrativas, alguns lugarejos da ilha de Santiago renasciam das cinzas recarregadas de humor: Pilonkan, Kadjéta, Rubera da Barca ou Renki Purga.
Rest in peace, Nhu Puxim / Nástaci Lopi (8-10-1942, Ribeira da Barca, Cabo Verde – 26.4.2024, Boston, EUA).
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1172 de 15 de Maio de 2024.