A cantora Mindelense, que ganhou o gosto pela música, ainda criança, ao ouvir a mãe cantarolando pela casa, enquanto se dedicava às lides domésticas, cantou, encantou e encheu de emoção o Auditório da Assembleia Nacional, na passada 6ª feira. Foram duas horas de mornas e coladeiras, sublimemente executadas, que chegaram a fazer marejar alguns olhos mais sensíveis e que deixaram claro que concertos intimistas não o são, necessariamente por se fazerem em salas pequenas e para pouca gente. São intimistas, sempre e quando aproximarem quem canta e quem ouve, mesmo perante uma plateia de algumas centenas de pessoas, na maior sala do país.

Evidenciando um contagiante “à vontade” em palco, fruto da maturidade artística, que os anos de estrada e as múltiplas apresentações pelo planeta a fora lhe vêm dando, Cremilda Medina foi verdadeiramente a timoneira do navio melódico que nos fez a todos viajar pela história e tradição do nosso cancioneiro geral. A direção musical esteve a cargo do brilhante Kako Alves, que com a mestria e qualidade que lhe são peculiares e amplamente reconhecidas, regeu em palco uma banda do mais elevado quilate, mas foi a Cremilda que deu o mote e as coordenadas para um memorável périplo espácio-temporal pela música de Cabo Verde, a verdadeira música de Cabo Verde, e que, antes mesmo de entrar em palco, conseguiu começar a encantar o público.

A escolha do tema introdutório não poderia ter sido mais feliz. A interpretação instrumental do tema Raio de Sol, de Miguel Silva e Renato Monteiro, que revelou a jovem de Cruz João Évora e a catapultou para os palcos, intercalando solos magistrais de violão de Palinh Vieira, de piano por Khaly Angel e guitarra de 12 cordas de Kako Alves, teve o condão de nos fazer rever mentalmente aquela menina vestida de branco, de pés no chão (há hábitos que não mudam), descendo as ruas do bairro onde nasceu, para em seguida, vermos surgir perante nós uma mulher madura, serena e visivelmente feliz por nos ter com ela.

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Amante confessa da morna, o mais cabo-verdiano de todos os géneros musicais, deu a dada altura uma breve, mas brilhante e muito bem conseguida, “escapadela” do repertório do álbum e brindou o público com uma apaixonante rapsódia de temas de Francisco Xavier da Cruz, o genial B.Leza, que arrancou a cada troca de música, sonoros aplausos e nos tornou a todos interpretes duma serenata improvisada a várias vozes.

Cremilda estava tão “em casa”, que conseguiu exteriorizar naturalmente toda a irreverência e o bom humor que a caracterizam, brincando com os músicos, rindo com eles e fazendo-os rir com ela. Soube com muita classe e sentido de oportunidade, escolher os momentos de participação do público, com temas que todos conhecem, todos gostam, mas que sobretudo, todos podem cantar sem esforço de maior. Chamou para si a responsabilidade dos “impromptus”, fazendo questão de dizer que não tinham sido combinados, nem ensaiados e que eram “coisa de momento” e soube conduzi-los brilhantemente. A interpretação de Odio ê Pobreza, terá sido talvez o momento alto da noite, com a plateia a cantar em uníssono os belos versos de Paulino Vieira, enquanto via uma Cremilda visivelmente emocionada descer do palco e caminhar por entre as filas da plateia.

Vê-la encostada ao balaústre em baixo do palco, a apreciar os músicos dando largas ao talento e virtuosismo, num jogo de solos, trouxe à memória momentos em que a Cesária Évora se encostava ao piano, primeiro do Chico Serra, mais tarde do Paulino Vieira e depois ainda do Nando Andrade, a ver a banda tocar. O tal ambiente de serenata e tocatina, que foi sendo criado ao longo da noite, com muita descontração, leveza de espírito e simbiose de energias, fez-nos nostálgica e docemente embarcar numa viagem pelo tradicional.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1195 de 23 de Outubro de 2024.