Formado pela Universidade Federal de Minas Gerais, dedica a sua pesquisa de doutoramento às origens históricas de “padrões de subalternidade” que definem a relação dos colectivos de pesca com as instituições estatais responsáveis pela gestão da actividade.

Há alguns anos que investiga e documenta a pesca artesanal em Cabo Verde. Que retrato faz deste sector?

Neste momento, temos os dados disponibilizados pelo governo, de que há 97 pontos de desembarque de pesca artesanal, em toda a dimensão do arquipélago. Falávamos em 75 pontos de desembarque na década de 80, segundo os dados do governo daquela época. Então, partindo dessa perspectiva, conseguimos ver que a pesca aumentou. Por exemplo, temos o dado de que, em Tarrafal de Santiago, em 1978, existiam 30 botes, hoje temos 100. No quadro mais amplo, a pesca aumentou a sua importância, acho que principalmente pelo facto de que é uma arte, principalmente a pesca de linha de mão em bote de boca aberta, que garante que o pescado circule entre as camadas populares do país. O preço do peixe aumentou muito nas últimas décadas, mas nas técnicas artesanais de pesca o primeiro peixe é para comer em casa, o outro é para vender. Essa circulação entre as famílias de pescadores, entre amigos, nos bairros, nas camadas populares do país, é fundamental.

Entendo a pesca artesanal cabo-verdiana como uma ferramenta importantíssima, não só para a questão da segurança alimentar, mas como forma de proteger a pesca de linha de mão em bote de boca aberta, a forma como ela surgiu em Cabo Verde, que também é uma forma muito interessante de protecção do meio ambiente.

O sector primário é muitas vezes apontado como um dos ‘parentes pobres’ da economia nacional, apesar de ter um potencial subvalorizado. Nesta visão está também, digamos, a marginalização dos pescadores...

Para compreendermos essa questão de maneira adequada, temos de ir à História, porque há um histórico muito antigo de localização dos pescadores artesanais na margem da sociedade. Creio que isso vem desde o tempo dos portugueses, das fábricas de conserva de atum. Quando analisamos os documentos escritos nos jornais da época, sobre pesca local, já existia uma perspectiva muito desqualificadora. Em 1985, no Encontro Nacional das Pescas, é a primeira vez que encontramos na documentação histórica, por exemplo, que 8% da população vivia dessa pesca. Então, começamos a ver reportagens no Tribuna, no Voz di Povo, sobre a pesca na Gamboa, sobre a pesca em Porto Mosquito. Não é que a pesca não existisse até àquele momento. Ela não existia para quem administrava as ilhas. A independência deu um impulso muito positivo, no sentido da ‘visibilização’ e tentativa de integração das comunidades nos programas de desenvolvimento que foram criados. Porém, esse impulso inicial redundou, na minha perspectiva, em fracassos importantes. Não na pesca, que continuou a crescer e aumentar a sua importância, mas na relação que se continuou a estabelecer entre as instituições estatais e os pescadores, com uma gestão demasiado tecnocrata. Não é uma peculiaridade de Cabo Verde, os Estados nacionais funcionam dessa forma. O Estado tem uma forma oficial de olhar para os fenómenos sociais. Então, as pescas começaram a ser vistas a partir da perspectiva de especialistas, porque a intenção era, de facto, integrar as comunidades da melhor forma possível no tecido social das ilhas. Porém, nesse processo, o conhecimento tradicional ficou para trás. Acredito ser necessária uma gestão estatal que incorpore uma série de dimensões da cultura marítima, a cultura artesanal-marítima, que é peça fundamental do universo camponês cabo-verdiano. Creio que o governo tem um activo extremamente importante nas mãos e que é subvalorizado, também nesse sentido. Pegamos no Plano Nacional de Gestão das Pescas, e é um plano que tem muita técnica e muita ciência ali...

Mas não tem a perspectiva dos pescadores?

A ‘perspectiva dos pescadores’, desde o tempo dos portugueses, está sempre eivada de erros. Por exemplo, acho importante reconhecer que muitas das praias têm relação com o território pesqueiro, não só com trabalho, mas com o lazer dos pescadores. São áreas de trabalho, mas também são áreas de lazer. A pesca artesanal, além de garantir que o peixe circule pelas camadas populares do país, também é uma actividade que garante que as classes populares ocupem os espaços das praias, cada dia mais cobiçadas pelos empreendimentos turísticos.

Os pescadores estão a ser afastados. Do mar, com uma série de estratégias industriais. Das praias, ocupadas por grandes empreendimentos turísticos.

Existe muito preconceito contra os pescadores. ‘Os pescadores bebem muito’, ‘têm muitos filhos’, ‘não sabem gerir o dinheiro’. Não podemos generalizar. Há muitos que não bebem, muitos, que têm uma vida financeira muito bem organizada, muitos que valorizam muito a segurança marítima. Não há uma política nacional que se preocupe, por exemplo, com a protecção das baías e das regiões próximas, onde os pescadores pescam e actuam. Não há uma política de valorização, de facto. Há um problema sério com as associações dos pescadores. Todas as comunidades de pesca têm uma associação, em que os pescadores não confiam, porque já foram roubados no passado, porque houve má gestão.

Quem são os pescadores artesanais na estrutura maior da sociedade cabo-verdiana?

O comandante Pedro Pires fala nisso no Encontro Nacional das Pescas, em 1985, que os pescadores estão no degrau mais baixo da sociedade. Eu acho que eles continuam, apesar de alguns ganharem, provavelmente, mais do que eu e você. Por isso, é importante que as comunidades e as associações funcionem. Um pescador artesanal com 40 anos de experiência no mar… a antropologia brasileira tem dado o título de doutor, doutor reconhecido. É preciso que, na equação do desenvolvimento de políticas, essas pessoas sejam ouvidas.

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É necessário implicar as pessoas...

Criar as ferramentas para que a gestão seja feita e compartilhada. Seria extremamente importante que existissem encontros nacionais e que os pescadores viessem de todas as ilhas. Eles também têm direito a participar na política. Entendo as dificuldades do país, que são muitas e muito importantes, agora, acho que é preciso que os pescadores sintam que participam de algo. Uma vez, ouvi de um professor que a pesca nos dá mais do que conseguimos retribuir. De facto, quantas crianças neste país comem só da pesca de linha de mão em bote de boca aberta? Um pai pescador, uma mãe peixeira... O mundo camponês cabo-verdiano conseguiu construir uma pesca que é extremamente importante para o país e que poderia estar a ser mobilizada a nível internacional.

Fale-me um pouco sobre a investigação que está a desenvolver...

Na tese, eu trabalho com muita documentação histórica, analiso toda a documentação do período do partido único, que criou estruturas para poder dar conta da pesca, porque até então a pesca não existia para os portugueses, não era interessante, não era significativa. Então, eu discuto frentes de apropriação dessa riqueza, que é uma riqueza cabo-verdiana. Primeiro, essa apropriação camponesa, que dá origem a 97 pontos de desembarque de pesca artesanal, e que compõe o universo camponês a partir de uma técnica ecológica de pesca. Depois, discuto a sobreposição dos interesses internacionais sobre essa pesca. Como é que essa disputa se configura no presente, como é que os acordos de pesca são a materialização da exportação que começou na década de 30. O governo independente não conseguiu produzir uma indústria de pesca capaz de fazer essa exploração e justifica [os acordos] alegando que o mar está subexplorado. Porém, se considerarmos a perspectiva dos pescadores artesanais, não é bem assim. Com a publicação do relatório FITI, podemos perceber que não são públicos os dados de desembarque da pesca nacional e da pesca estrangeira. Na verdade, o que se configura é um cenário de disputa pelo peixe que tem, na base da sociedade camponesa, a representação dos pescadores, que tenta convencer a sociedade cabo-verdiana de que é preciso rever prioridades em relação a essa exportação, porque a situação actual é complicada. Não há uma política nacional de protecção dos pescadores artesanais, uma política efectiva…

Os pescadores queixam-se da escassez de peixe nos mares…

E há uma controvérsia em relação a isso, porque a atitude do governo, actualmente, é de discutir a diminuição do peixe a partir da perspectiva das mudanças climáticas. Há, de facto, uma influência, não é possível negar que as mudanças climáticas estão a influenciar a diminuição do pescado, mas não é possível, com base na antropologia da pesca e na antropologia marítima, negligenciar o facto de que, em qualquer lugar onde houve pesca industrial, o peixe diminuiu. Aconteceu com o Senegal, por exemplo, e há um problema grave em toda a costa oeste africana, em função da pesca asiática e europeia nesses mares. Não são só os europeus e, além dos acordos, há a pesca pirata. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1195 de 23 de Outubro de 2024.