Disse, aquando da Instalação, que o Tribunal Constitucional (TC) não era um “luxo”. O tempo deu-lhe razão?

Sim, claramente deu-me razão. Já o tinha dito, em várias outras intervenções, e antes de ser Presidente da República. Sempre defendi a instalação do TC, e lembro-me, inclusive, de que quando era director da revista Direito e Cidadania, tivemos num número especial extraordinário em que sugeríamos aspectos importantes para a revisão constitucional. Uma das sugestões era a instalação de um TC, uma jurisdição constitucional autónoma, a par de outras propostas como o Provedor da Justiça e a criação de tribunais de execução de sanções criminais. Ficámos muito satisfeitos quando, na revisão da Constituição de 99, finalmente se previu a criação tanto do Provedor de Justiça como do TC. Também era cronista em jornais locais e, através de artigos na imprensa, defendi a instalação de uma jurisdição constitucional autónoma, contraindo algumas teses, incluindo de personalidades respeitáveis, que diziam que, num país como Cabo Verde, a instalação de um TC não era uma prioridade e que até podia constituir uma espécie de luxo democrático. Existia, por exemplo, o argumento de que não haveria trabalho. A verdade é que de 2015 a 2023 o TC preferiu 527 decisões, a partir de 420 processos entrados, e há 113 processos pendentes, o que quer dizer que não faltou trabalho. Creio que, se olharmos de 2015 para os dias de hoje, boa parte dos adversários da instalação do TC terá mudado de opinião, já que o Tribunal tem feito um trabalho muito relevante em termos de fiscalização da constitucionalidade das normas jurídicas. Esse trabalho traduz-se, no meu entender, naquilo que sempre defendi ser a mais-valia de uma jurisdição constitucional autónoma: contribuir para a existência, em Cabo Verde, de uma cultura constitucional, o que valeria dizer, uma cultura da democracia e do Estado de Direito. Hoje, é mais do que evidente a cultura constitucional, a necessidade de recurso ao Tribunal Constitucional, em qualquer modalidade – recurso de amparo, fiscalização sucessiva, fiscalização abstracta, fiscalização concreta. O TC tem feito um trabalho que merece, creio eu, o aplauso da maioria das pessoas que lidam com as questões da fiscalização da constitucionalidade das normas jurídicas.

Falou das estatísticas. Tivemos esse considerável número de processos, mas também uma tendência de aumento das entradas a cada ano. Em 2023, tramitaram-se 222 processos. Como vê esta crescente procura?

É um sinal de que as pessoas sentem necessidade do TC e também um sinal de confiança na jurisdição constitucional. Durante os 10 anos em que fui PR, fiz sempre um discurso, que já era a bandeira da minha campanha eleitoral em 2011, de contribuir para o aumento da cultura constitucional em Cabo Verde, porque isso traduz-se num aumento, numa extensão da cultura democrática e do Estado de Direito em Cabo Verde. É claro que há outras questões importantes, mas a minha visão sempre foi de que a consolidação da democracia e do Estado de Direito são pressupostos fundamentais. É com base nesses pressupostos que desencadeamos os processos de desenvolvimento económico, social, cultural e humano no nosso país. O fundamental é, então, a consolidação e aprofundamento da democracia, a modernização do Estado de Direito e o fortalecimento dos seus pilares. Entre esses pilares, destaca-se o respeito e afirmação da Constituição fundante do Estado de Direito e da Democracia, que foi a nossa Constituição de 1992. O TC tem, pois, um papel fundamental e deve desempenhá-lo. Dou outro dado: há 20 anos, era muito raro um requerimento de um advogado invocar violação de normas constitucionais. Durante esse tempo, raramente uma sentença ou um acórdão de um tribunal cabo-verdiano invocava normas constitucionais. Actualmente, eu diria que é quase uma banalidade de base jurídica. Não há requerimento que não invoque normas constitucionais e não há sentença ou acórdão que não o faça também para fundamentar as suas decisões. Não há instância da sociedade civil, manifestantes, grevistas, deputados, entre outros, que não invoquem normas constitucionais. Isto é um avanço tremendo, e é fundamental em termos de consolidação de um Estado constitucional que em Cabo Verde foi iniciado, no meu entender, e como disse, apenas com a Constituição de 1992.

Durante estes nove anos também foi criada muita jurisprudência. Como avalia esta vertente?

Em tudo há críticas, e tenho ouvido e lido algumas, mas creio que eram mais frequentes no início da actividade do tribunal, e não são muito relevantes. As pessoas dizem que, às vezes, os acórdãos são enormes, centenas de páginas com muitas citações, que, por vezes, é excessivo, e os acórdãos mais parecem obras doutrinárias de direito. Contudo, em Cabo Verde, embora tenha havido uma melhoria clara e substancial, a cultura da fundamentação das decisões judiciais apresenta ainda algum défice. O exemplo do TC é um caso positivo. Isto é, as decisões são profusamente fundamentadas e isso tem um efeito positivo, contagiando toda a jurisprudência nacional com a necessidade de fundamentar as decisões judiciais. Uma boa fundamentação das decisões judiciais é um critério de legitimidade do exercício da função judicial. Esta função deriva da Constituição, mas a sua legitimidade vem da fundamentação, da convicção que a decisão possa ou não encontrar nos destinatários das decisões judiciais. Se o cidadão vê uma decisão bem fundamentada, tendencialmente considera-a mais justa e, portanto, reforça-se a ideia da legitimação do exercício da função judicial. Isto é importante. Um dos grandes pilares do Estado de Direito Democrático que, como tenho repetido, precisa de ser consolidado, é o reforço da competência técnica e o reforço da independência do Poder Judicial, ao lado da liberdade de imprensa e de outros pilares.

E como PR sentiu pressão, às vezes, de ir contra o TC?

Claro. Vivemos em uma sociedade plural de opiniões, deve haver pessoas que ainda acham que o TC não se justifica. Lembro-me, por exemplo, que o doutor Wladimir Brito, que teve um papel fundamental na elaboração do primeiro projecto de Constituição, sempre foi contra a instalação do TC. Ele considerava que a prioridade era criar Tribunais da Relação. Felizmente, já foram instalados os Tribunais da Relação de Sotavento e Barlavento. Não sei qual a sua posição hoje, mas estes são custos necessários, quase obrigatórios, do Estado de Direito. Se queremos ter um Estado de Direito moderno e sólido, temos de ter os instrumentos do Estado de Direito moderno. As democracias são sistemas cada vez mais complexos e sofisticados. Não podemos seguir algumas vozes ligadas a correntes hoje chamadas de populistas, que pretendem simplificar tudo. Querem reduzir o número de deputados, acabar com o TC e o Provedor de Justiça, criando a ilusão de que haverá soluções mais simples, quase miraculosas, para todos os problemas. Portanto, é necessário que os democratas, os adeptos do constitucionalismo, os militantes das liberdades estejam também municiados com informação, com conhecimento, com preparação para a defesa daquilo que são as necessidades e os custos do Estado democrático e de um Estado de Direito.

Falando de custos, a composição do TC prevê entre 3 e 7 juízes. Actualmente, conta com 3 e há quem defenda um aumento. Justifica-se?

É evidente, por várias razões. Colocou-se o mínimo de 3 porque estávamos num contexto em que havia muitas reservas mentais relativamente à existência desta jurisdição constitucional. Muita gente entendia que o Supremo Tribunal do Justiça deveria continuar a exercer tais funções. No entanto, creio que hoje, com a legitimação crescente da jurisdição constitucional, pelo trabalho relevante e meritório que o TC tem feito – apesar das críticas que se possam ser feitas –, já se vê que o número de 3 juízes gera dificuldades. Desde logo, em caso de impedimento de um, há dificuldades no processo de substituição. Além disso, as decisões dos acórdãos do TC são tomadas por maioria, e com apenas três juízes, essa maioria é de apenas dois. Às vezes, essas decisões envolvem matérias extremamente complexas. Por exemplo, tivemos o caso do SOFA e outras questões políticas relevantes, em que as decisões foram de dois votos a favor e um contra. Portanto, para transmitir até uma imagem de maior pluralismo e representatividade de opiniões no seio de uma ordem tão importante, acredito que, no mínimo, o tribunal deveria contar com cinco membros. E esse número também facilitaria o próprio trabalho e daria vazão à procura crescente da jurisdição constitucional autónoma. São Tomé e Príncipe, por exemplo, tem um TC com cinco juízes.

Entretanto, a prática do TC também terá permitido uma espécie de teste, pôs à prova a robustez da Constituição. Considera que haverá necessidade de revisão num futuro próximo?

Já são muitos anos sem revisão, mas quando falo de revisão constitucional em Cabo Verde, tenho sempre uma posição que as pessoas podem achar conservadora, mas que é uma posição de cautela. A tendência normal, quando se abre um processo de revisão, é choverem propostas e ideias. Por exemplo, surgem vozes, que creio serem minoritárias, a quererem mudar o sistema de governo. Defendem a adopção do presidencialismo, e apresentam argumentos, facilmente rebatíveis, como o de que se poupam recursos ao país se em vez de termos um primeiro-ministro e um PR, tivermos um PR que é chefe de governo. Não é um argumento muito relevante, porque este não é um problema de aritmética ou de contabilidade. O importante é ter um sistema que sirva melhor a democracia e que sirva melhor o interesse dos cidadãos. O sistema que temos em Cabo Verde tem provado bem. Vivemos em democracia há mais de 30 anos e não houve nenhuma crise política relevante que não tenha sido resolvida dentro do quadro constitucional. Portanto, a Constituição não foi empecilho para resolver nenhum problema relevante. Se tem funcionado, para quê mudar? Mas, mais do que isso: quando se fala em presidencialismo, muitas pessoas pensam nos EUA, um país que, apesar de seus períodos complicados, tem um sistema democrático que funciona relativamente bem. Porém, os EUA são um país com uma grande tradição de democracia, tem instituições democráticas fortes, tem o poder judicial consolidado, tem uma imprensa forte e uma opinião pública pujante. Nós somos uma democracia relativamente nova, as nossas instituições não são muito consistentes ainda. Uma validação do presidencialismo não deve ter em conta apenas os EUA. Há exemplos de sistemas presidencialistas: no Brasil, Senegal, Angola, Níger, Mali, entre outros. Em países onde não há grandes tradições democráticas, nem de Estado de Direito, o presidencialismo não favorecerá poderes autocráticos e até poderes pessoais? O sistema que temos em Cabo Verde é um sistema que obriga à partilha do poder, obriga a uma pedagogia democrática e favorece o diálogo e, portanto, a procura de soluções de consenso. É também um sistema sofisticado o que, por sua vez, pressupõe alguma cultura democrática, como se vê na questão da relação entre os poderes do PR e do governo, por exemplo.

Como está essa relação entre poderes? Depende de quem está nos cargos ou a Constituição protege de eventuais desequilíbrios?

Não vou pronunciar-me sobre titulares concretos. Falando em geral, o sistema que temos, que é uma espécie de semi-presidencialismo fraco, ou parlamentarismo mitigado, ou racionalizado – chamemos-lhe o que quisermos –, é um sistema misto, parlamentar-presidencial. É um sistema que é muito plástico, o que quer dizer que implica uma compreensão exacta dos poderes, por exemplo, do governo e do PR, de forma que o presidente não interfira naquilo que são as competências do governo, mas também não haja qualquer tentação de subtrair ao PR o exercício das competências próprias. Por ser um sistema plástico, depende de vários factores. Por exemplo, se há maioria absoluta ou não. Até agora, não tivemos governos de maioria relativa, mas em países com este tipo de sistema que já tiveram, como Portugal, um PR tem mais margem de manobra do que se houver maioria absoluta. Depende também dos titulares e exige destes uma forte cultura de democracia, uma compreensão dos seus poderes, uma vontade a que chamamos de vontade de constituição: uma cultura constitucional. Portanto, depende da maioria, depende também se o PR é um presidente mais de expressão partidária, entre outros factores.

Ainda no que toca à revisão e eventuais falhas da actual CRCV. Que fragilidades tem denotado?

Tenho levantado uma questão, que pode parecer de somenos, mas que é importante, que é a substituição do PR na sua ausência do país. Tem havido a interpretação, com base em dispositivos constitucionais, de que é substituído pelo presidente da Assembleia Nacional. O próprio TC, de certa maneira, validou essa interpretação, que, para mim, é uma interpretação absurda. Sempre defendi que a substituição do PR só é válida em casos de impedimento, como quando está impossibilitado de exercer as suas funções devido a doença. Já estive, por exemplo, a discursar como PR na Assembleia Geral das Nações Unidas, ao mais alto nível, e no mesmo momento em que estou a discursar como PR, há um Presidente a substituir-me nas ilhas. Há várias outras situações similares e é algo que se mantém. Num mesmo momento, num mesmo instante, há dois Presidentes. Veja-se Portugal, que tem um sistema semelhante ao nosso, e imagine-se a complicação que seria quando o PR se ausenta. Sai para Bruxelas de manhã e regressa no final da tarde e seria necessário calcular os minutos exactos em que a substituição ocorreria, entre 10h10 e 17h24, por exemplo. É absurdo. Um princípio do Direito é que nenhuma interpretação, mesmo que tenha algum apoio na letra da norma, deve ser tida em conta se levar a resultados absurdos ou irrazoáveis. Mas, há outros pontos que podem ser considerados numa revisão constitucional. No Poder Judicial, tudo o que implique o seu reforço. Por exemplo, a nomeação pelo PR do Presidente do Conselho de Magistratura é limitada, já que ele apenas aceita ou rejeita a proposta dos pares, sem margem de manobra.Parte inferior do formulário Também a hipótese de o Supremo Tribunal de Justiça poder ter outra composição, com a inclusão de juízes que não sejam da carreira judicial. São questões que podem ser ponderadas.

Entretanto, o mandato dos juízes do TC vai caducar. Tem havido uma certa polémica em relação à legitimidade de decisões tomadas por titulares com mandatos caducados. Falo do caso das contas da Presidência da República e do relatório do Tribunal de Contas (TdC). Tem acompanhado?

Sim, estou a acompanhar por alto, mas o mesmo se pode aplicar ao Tribunal Constitucional ou à Comissão Nacional de Eleições ou à Comissão Nacional de Protecção de Dados... Pode haver quem defenda uma alteração na Constituição para evitar esse tipo de situação. Neste momento, há uma disputa entre dois princípios diferentes. Há o princípio da segurança jurídica, que diz que não deve haver hiato no mandato de certo tipo de órgãos, pois se o mandato terminar antes da nomeação ou eleição de novos titulares, pode haver rupturas. Se os juízes do TdC perdem o mandato e não podem decidir, deixa de haver fiscalização de contas. Se o mandato do TC terminar e não se poder prolongar até à posse de outros titulares, deixa de haver fiscalização da constitucionalidade das normas. Se acontecer com a CNE, nem haverá processos eleitorais. Portanto, há esse princípio da segurança jurídica e da continuidade do exercício de funções relevantes. Mas, esse princípio pode colidir com outros. Prolongar indefinidamente o mandato de titulares, sem eleição ou posse de novos membros, pode violar um princípio republicano e democrático fundamental, que é o princípio da renovação dos órgãos. Não é por acaso que o mandato tem um prazo. Portanto, podem ser encontradas soluções intermédias e há várias. Há quem defenda por exemplo, a definição de um prazo máximo de continuidade, há quem defenda que se dentro de certo prazo não forem eleitos novos titulares, porque não há maioria qualificada para a eleição, o poder de eleição passe para outro tipo de órgão. Enfim, há várias soluções para criar uma concordância prática entre princípios aparentemente conflituantes. Isso também pode ser objecto de discussão num processo de revisão constitucional. Pode haver revisão, aprimoramento, já dei alguns exemplos, mas, no essencial, a Constituição de 1992 funciona relativamente bem e os seus princípios fundamentais continuam perfeitamente válidos.

Mas, para terminar esta questão dos mandatos caducados, como gerir, no quadro presente?

Se as instituições param, isso pode até constituir-se como um outro perigo, que é o perigo de manipulação. Falando em abstracto, pode acontecer, que o organismo competente para designar novos titulares não o faça, visando bloquear o exercício da função. Por exemplo, se há vontade de acabar com a fiscalização da constitucionalidade das normas do TC, como o mandato não se prolonga, não se elegem os substitutos e deixa de haver essa fiscalização. Quer-se evitar novas eleições, não se elegem os novos titulares da CNE. Portanto, a CNE não pode funcionar com os membros com o mandato caducado: bloqueia-se a realização de eleições. Alguém não quer fiscalização de contas, bloqueia a eleição de novos juízes, e não há contas fiscalizadas. Há sempre esse risco.

Os juízes do TC também vão ficar nessa situação. Voltando ao TC, na hora de se escolher a nova equipa, o que acha que deve ser tido em conta? Por exemplo, há quem defenda que não deve ser composta apenas por magistrados de carreira.

O TC é um tribunalde natureza específica, com características próprias, diferentes dos outros tribunais. Condição sine qua non, sendo um tribunal que decide sobre matéria constitucional, tem de ter juízes habilitados, muito bem preparados, pessoas competentes em matéria de direito constitucional. Agora, é sempre bom que haja uma composição mista, que inclua magistrados e não magistrados de carreira. Neste momento penso que temos uma composição equilibrada, com um magistrado de carreira e dois juízes que não o são. Em cinco juízes, poderia ser três de dois. O importante é que sejam escolhidas pessoas com apetência para as discussões constitucionais, juízes que tenham cultura constitucional e sejam amantes do Estado constitucional. As pessoas responsáveis pela decisão já devem estar a pensar nisso, porque o ideal é não haver essa prática de permanência longa nos cargos, com os mandatos caducados. É uma exigência do princípio da renovação, que é um princípio estruturante da ordem jurídica constitucional, é uma decorrência do princípio democrático.

Para terminar, fechando onde começamos: que avaliação do trabalho feito no primeiro mandato do TC e o que se pretende para o futuro?

A avaliação que faço é muito positiva. Não é um trabalho isento de críticas, não estou sempre de acordo com as decisões do TC e já dei o exemplo da interpretação sobre a substituição do PR. Houve outros acórdãos relativamente aos quais tenho divergências, mas isso é normal. Globalmente, creio que tem sido um trabalho positivo, é uma boa equipa, e espero que a próxima equipa seja, pelo menos, igualmente competente e merecedora da confiança dos cidadãos pela qualidade do trabalho e, sobretudo, pela fundamentação das suas decisões.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1194 de 16 de Outubro de 2024.